sexta-feira, 29 de março de 2013

O jacaré

Tinha um jacaré por entre os prédios
Gritos nesta manhã morna
Tem um jacaré ali
olha!

Ele parado imóvel
Alheio ao espanto praiano
Um jacaré
Com toda sua arrogância de dentes rastejantes

A mãe cata o menino na rua
Como se o mundo fosse acabar
Nesta manhã insólita
Um jacaré por entre os prédios

Agora montou-se o palco da desordem
Um grupo chama os bombeiros
Alguns conversam amenidades
Com os olhos no jacaré é claro

Ele continua lá
Imóvel neste rio que corta os prédios
Um jacaré por entre os prédios
Majestoso jacaré do esgoto

Num dos prédios
Maravilhoso zoológico sem regras
Meninos engaiolados
Atiram pedras no pobre coitado

Perdi o medo de todo
Olhei nos olhos majestosos
E vi que sua imobilidade não era arrogancia
A arrogância era minha em não perceber antes

Ele estava morrendo
A quatro dias não chove
A água está densa
Reclamando ao pó o sopro da vida

Chorei neste palco da desordem
As pedras são a ponta desta violência
Corri os olhos no rio
E lá estava a verdadeira pedra

Rolando rio a baixo
Estrume acumulado de dias sem chuva

O cheiro de lavanda fica em casa
É claro
O resto é na descarga meu filho
Doença não quero em casa

Disse a boa mãe limpa e asseada
Somos então sujos por dentro?
Perguntou o menino perguntão

Não meu filho você é limpinho
O problema são os outros
as moscas
bactérias e vírus que não vemos

Lave bem a mão viu
O almoço tá na mesa

Como pode ser violenta esta imagem?
Quem há de me condenar?

Cresci e percebi o absurdo da limpeza extrema
Hoje choro por um jacaré
Que veio mostrar o sangue em minhas mãos
Não adianta lavar que não sai

Amanhã quem sabe
Eu morra num hospital branquinho
Dogrado, limpo e com o lençol trocado
E tolhido de minhas utimas palavras

Ao pó retornaremos
Do jacaré ao menino
Uns vão mais cegos que outros
Cegos para vida

Mortos vivos
que não viveram

E volta o menino perguntão

Mãe o jacaré me disse
Não tem jeito
O que o jacaré te disse meu filho?
Que a água tá suja e não adianta lavar não

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