Gritos nesta manhã morna
Tem um jacaré ali
olha!
Ele parado imóvel
Alheio ao espanto praiano
Um jacaré
Com toda sua arrogância de dentes rastejantes
A mãe cata o menino na rua
Como se o mundo fosse acabarNesta manhã insólita
Um jacaré por entre os prédios
Agora montou-se o palco da desordem
Um grupo chama os bombeirosAlguns conversam amenidades
Com os olhos no jacaré é claro
Ele continua lá
Imóvel neste rio que corta os prédiosUm jacaré por entre os prédios
Majestoso jacaré do esgoto
Num dos prédios
Maravilhoso zoológico sem regrasMeninos engaiolados
Atiram pedras no pobre coitado
Perdi o medo de todo
Olhei nos olhos majestososE vi que sua imobilidade não era arrogancia
A arrogância era minha em não perceber antes
Ele estava morrendo
A quatro dias não choveA água está densa
Reclamando ao pó o sopro da vida
Chorei neste palco da desordem
As pedras são a ponta desta violênciaCorri os olhos no rio
E lá estava a verdadeira pedra
Rolando rio a baixo
Estrume acumulado de dias sem chuva
O cheiro de lavanda fica em casa
É claroO resto é na descarga meu filho
Doença não quero em casa
Disse a boa mãe limpa e asseada
Somos então sujos por dentro?Perguntou o menino perguntão
Não meu filho você é limpinho
O problema são os outros
as moscas
bactérias e vírus que não vemos
Lave bem a mão viu
O almoço tá na mesaComo pode ser violenta esta imagem?
Quem há de me condenar?
Cresci e percebi o absurdo da limpeza extrema
Hoje choro por um jacaréQue veio mostrar o sangue em minhas mãos
Não adianta lavar que não sai
Amanhã quem sabe
Eu morra num hospital branquinho
Dogrado, limpo e com o lençol trocado
E tolhido de minhas utimas palavras
Ao pó retornaremos
Do jacaré ao menino
Uns vão mais cegos que outros
Cegos para vida
Mortos vivos
que não viveram
E volta o menino perguntão
Mãe o jacaré me disse
Não tem jeito
O que o jacaré te disse meu filho?
Que a água tá suja e não adianta lavar não
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